Um único ato cometido por um servidor público pode repercutir em responsabilidades nas esferas administrativa, criminal e civil. Nesse sentido, a Lei nº 8.112/1990 dispõe que “o servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições” (art. 121) e que “as sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si” (art. 125).
Nesse contexto, milhares de servidores públicos têm enfrentado o árduo trâmite de processo administrativo disciplinar, tomada de contas, ação civil pública por improbidade administrativa, ação criminal, dentre outros expedientes que visem apurar a responsabilidade de agentes públicos.
Há, portanto, uma relevante demanda por advogados especializados nessa matéria, o que representa oportunidade aos profissionais dedicados para tal ofício. No entanto, dada a sua complexidade, somente os mais qualificados estão aptos a patrocinar defesas nesse ramos especializado.
Para falar sobre o tema, convidamos o advogado e professor Léo da Silva Alves para compartilhar um pouco de sua experiência sobre o tema. O nosso entrevistado é advogado com décadas de atuação, autor de dezenas de obras jurídicas sobre responsabilidade de servidores públicos, conferencista com trabalhos na América do Sul, Europa e África. Foi professor de Direito Administrativo da Universidade Católica de Brasília, foi procurador federal e é professor convidado em Escolas de Governo, Escolas de Contas, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia em 21 Estados do Brasil. Dirigiu importantes eventos jurídicos internacionais e é detentor de condecorações da Internacional Police Association, da Societé international de Crimonologie, dentre outras comendas e homenagens. É o presidente da Rede Internacional de Excelência Jurídica.
Esta é mais uma entrevista exclusiva de uma série especial intitulada “SUCESSO NA ADVOCACIA”, onde conversamos com renomados(as) profissionais – todos(as) especialistas em suas áreas de atuação e com êxito em suas carreiras – sobre os desafios e oportunidades de cada seara jurídica, com o objetivo de extrair lições e dicas práticas para você, nosso(a) querido(a) leitor(a), que busca o seu lugar ao sol. Para ter acesso às demais entrevistas, clique aqui.
VIVER DIREITO — O que é o Direito Administrativo Disciplinar e quais são as principais legislações de regência?
Dr. Léo da Silva Alves — Tenho o Direito Administrativo Disciplinar, ou Direito Disciplinar, como prefiro, como um ramo autônomo da ciência jurídica. Afasto, em regra, a condição de “administrativo” para evitar que ele seja considerado um apêndice, uma parte do Direito Administrativo convencional.
Desde a década de 1930 a doutrina alemã estabelece o sistema do Direito Penal Criminal e do Direito Penal Não-Criminal. No primeiro caso, estavam as matérias relacionadas aos crimes e às contravenções; no segundo, havia uma subdivisão: Direito Penal Administrativo se refere aos caos nos quais a administração pública aplica sanções, como multas tributárias, demolição de obras irregulares, interdição de estabelecimentos comerciais, etc.; e o Direito Penal Disciplinar é associado às condenações de funcionários por atos ilícitos praticados no exercício do cargo ou com relação a ele. Sigo, portanto, essa linha para, modernamente, simplificar o Direito Disciplinar como um ramo específico, que possui legislação própria, princípios informativos específicos, considerável doutrina e uma farta correspondência jurisprudencial, ainda que controversa.
Como todos os ramos do Direito, a matéria disciplinar tem associação com outras especialidades. Digo que é filho do Direito Constitucional, irmão do Direito Penal e primo do Direito Administrativo; por conseguinte a principal legislação de regência provém dessas vertentes.
A defesa de servidores públicos, por vezes, envolve atuação em diversas frentes. Como deve o(a) advogado(a) se preparar para intervenções tão distintas e especializadas?
O estudo é sempre o caminho. Atuar na defesa de agentes públicos impõe o domínio de questões substancialmente distintas ao atendimento em causas trabalhistas ou em matérias civis e criminais. Talvez a maior dificuldade esteja em compreender o rito. O processo (metodologia) é algo que existe para dar sequência lógica aos atos processuais e, exatamente aqui, há enorme confusão. Mesmo agentes do serviço público encarregados de instruir essas causas não possuem a clareza quanto à ordem dos procedimentos. Há processos que se assemelham ao sanduiche popular do tipo X-Tudo: entre duas fatias de pão coloca-se qualquer coisa que seja do agrado de alguém.
Aconselho aos meus alunos, em cursos em Escolas de Governo e em Defensorias Públicas, por exemplo, que primeiro entendam o rito, o passo a passo; depois estudem como cada ato deve ser praticado. O que é a notificação inicial? Qual a finalidade? O que deve conter? Como ela é levada à parte arguida? Paralelamente, o advogado usará de forma supletiva, mas com abundância, elementos do Direito Penal e Processual Penal e muito do Código de Processo Civil, que é a matriz de todos os processos. Em resumo, o profissional deve estar apto a atuar com as nuances que caracterizam esse modelo de processo, que bebe de várias fontes.
Dentro dessa resposta, vale dizer que o Direito Disciplinar não se esgota nos processos e nas eventuais punições. O seu objetivo é o controle da disciplina, visando melhorar o funcionário e melhorar o serviço. Essa meta por vezes se alcança pela aplicação de sanções, mas há um elenco de meios alternativos que dispensam processos e têm se mostrado mais eficazes, além de céleres e não onerosos. Cito como referências o ajustamento de conduta e as câmaras de mediação e conciliação de incidentes funcionais, dois modelos que tive o privilégio de formatar e hoje estão em uso nas principais estruturas administrativas do país.
Quais são os cuidados que o(a) advogado(a) deve ter para atuar perante os tribunais de contas?
A atuação perante tribunais de contas é algo muito sensível porque, obviamente, remete à responsabilidade por supostos danos ao erário. São valores elevados e as condenações podem comprometer todo o patrimônio construído durante a vida e ainda não ser suficiente para a cobertura da condenação. Então, o patrono da causa deve estar ciente, a princípio, do peso que recai sobre a sua atuação.
Outro ponto a ser destacado é o rito. Embora esteja sumulado pelo Tribunal de Contas da União, valendo para todos os 33 tribunais de contas do país, que se aplica supletivamente o CPC, o rito dos processos é especial. É preciso conhecer, sobretudo, o Regimento Interno e lá será facilmente percebido o pequeno espaço reservado para a advocacia, embora traga o rótulo do contraditório e da ampla defesa. Na prática, essa amplitude não existe.
Por fim, há outra questão prática: auditores dos tribunais, profissionais experientes, realizam as apurações durante meses; são números, dados, gráficos, cruzamentos, projeções. O advogado tem poucos dias para, em defesa escrita, desmontar todo esse liame de acusações; e, na tribuna, apenas dez minutos para, em sustentação oral, convencer os ministros ou conselheiros sobre algo em relação ao qual já têm convencimento previamente formado por conta das auditorias. O tempo opera contra a defesa. Os advogados devem estar atentos, ainda, que o espaço de questionamento na Justiça é reservado para violações ao devido processo legal. No mérito, a jurisdição dos tribunais de contas é privativa.
Quais são os desafios de atuar judicialmente contra a União em matéria administrativa disciplinar?
Atualmente o principal desafio está no brasão da República. As autoridades judiciais e o Ministério Público se impressionam com os papéis produzidos no âmbito da administração; aquilo que é escrito em espaços com o timbre oficial parece ser a expressão da absoluta verdade. Um funcionário encaminha um memorando à chefia acusando um servidor; a chefia já vê gravidade e, inconscientemente, já forma um raciocínio de culpabilidade. Instaurado um processo, os membros da comissão se veem na obrigação de confirmar aquela versão; levado o desastre à Justiça, as autoridades observam aquele volume de documentos com o brasão nacional referindo-se negativamente ao acusado e já o têm como responsável. Raros são os juízes que vasculham a origem para perceber que de uma infeliz notícia surgiu um enredo equivocado.
O advogado que busca o controle judicial desses atos tem que enfrentar esse terrível costume que se instaurou nos tribunais: o de valorizar tudo o que os prepostos da administração escrevem, verdadeiros disparates; e por vezes sequer fazer a leitura científica das razões de direito acostadas pelos advogados. É preciso tempo, ânimo, conhecimento e certa contundência para advogar nesse ambiente.
O que diferencia um(a) profissional mediano(a) de um(a) advogado(a) de excelência no que tange à defesa de servidores públicos?
A diferença está no conhecimento. Está claro que se trata de uma área de atuação especializada e, como tal, começa com o estudo e avança com a experiência. A parte que se refere à interpretação das figuras infracionais é a menos complexa, porque a doutrina socorre quando se pesquisam questões de fundo. O Manual da Controladoria-Geral da União é um material, também, de grande proveito. O problema reside na compreensão do rito, em fazer com que agentes responsáveis pela instrução sigam a metodologia, e na capacidade de ir à Justiça para contornar os obstáculos que os tribunais colocam, na medida em que pressupõem que tudo o que é produzido na administração atende ao interesse público, quando, por vezes, atende o interesse de um vulgar administrador público, o que é substancialmente diferente.
Os profissionais de defesa devem, ainda, ter um razoável conhecimento de psicologia jurídica, medicina legal, sociologia e até história. O poder de convencimento reside na capacidade de situar o caso concreto a determinado ambiente ou a certos perfis de pessoas. Como acusados tanto podem estar estelionatários institucionais como indivíduos portadores de enfermidades mentais ou distúrbios psicológicos; Entram nesse cenário o transtorno obsessivo compulsivo, a síndrome do pânico, a síndrome da dependência; no lado da administração, como deflagradores do processo, é possível que estejam doentes morais, narcisistas destrutivos, querelômanos e sociopatas.