João Batista Teixeira - Viver Direito - Entrevista

A voz da experiência: entrevista exclusiva com o Dr. João Batista Teixeira

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Desembargador aposentado, cidadão honorário de Brasília e magistrado com mais de 30 anos de carreira concede entrevista exclusiva ao portal jurídico Viver Direito sobre temas históricos e atuais de grande relevância

O portal jurídico Viver Direito preza pelo debate qualificado sobre pautas de importância nacional. Para tanto, tem convidado profissionais renomados para entrevistas exclusivas voltadas a debater temas jurídicos e afins com propriedade e independência.

Nesse sentido, entrevistamos relevantes juristas, incluindo professores de Direito, advogados, magistrados e procuradores federais, entre outros, com esse objetivo em vista.

Hoje, com muito orgulho, temos a honra de conversar com o Dr. João Batista Teixeira, um jurista com mais de 30 anos de carreira na magistratura e com grande experiência na docência e na advocacia. O nosso entrevistado é Desembargador aposentado do TJDFT, foi Desembargador Eleitoral do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal (TRE-DF) e merecidamente agraciado com o título de cidadão honorário de Brasília pela Câmara Legislativa do DF.

O Dr. João Batista Teixeira presenteia os leitores do Viver Direito com uma entrevista de fôlego, onde carinhosamente respondeu sobre diversos questionamentos de grande importância jurídica, ao mesmo tempo em que compartilha conosco um pouco de sua vasta experiência profissional, pessoal e jurídica.

Viver Direito – A vossa carreira na magistratura teve início antes da promulgação da Constituição Federal de 1988. Como foi, em vossa experiência pessoal, o período de transição para uma nova ordem constitucional?

Dr. João Batista Teixeira – De fato, ingressei na Magistratura em 23.07.1986, em Rondônia. Quanto à transição para a nova Ordem Constitucional, a magistratura em geral passou por significativas modificações e adaptações para se adequar aos novos mandamentos constitucionais, especialmente com a criação do Superior Tribunal de Justiça, cuja missão é unificar a jurisprudência no País. Mas a transição transcorreu de forma natural, sem qualquer ruptura ou dificuldade invencível.

Sempre dediquei meus estudos e aprofundamentos mais aos outros ramos do saber jurídico, especialmente ao Direito Administrativo, Direito Processual Civil, Direito Civil, Direito Penal e Direito Eleitoral. Embora o Direito Constitucional não tenha estado nesse rol de forma mais peremptória, relativamente à Constituição, não posso deixar de lembra, ainda que en passant, algumas das profundas modificações introduzidas pela nova ordem constitucional.

Uma delas, talvez a mais notável e profunda, diz respeito à instituição do Estado Democrático de Direito em nosso país. Para o Judiciário, foi muito importante poder julgar segundo as leis emanadas do povo, por meio de seus representantes (Poder Legislativo), principalmente porque vínhamos saindo do regime militar. Para o povo, a importância foi a democracia instituída e o fato de o Estado também se submeter às leis voltadas para os cidadãos. Também destaco importantes e pontuais mudanças que repercutem em inúmeras atividades do cotidiano, em  algumas seara: na INDIVIDUAL e FAMILIAR, a igualdade de direitos entre homens e mulheres; na POLÍTICA, a adoção do voto pessoal, direto e secreto para os analfabetos e jovens entre 16 a 18 anos, além de eleições diretas para o presidente da república, para governadores dos estados e do Distrito Federal, para prefeitos municipais e parlamentares; na do JUDICIÁRIO, as instituições do STJ (já mencionada) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já em 2004; na dos DIREITOS SOCIAIS, a redução da jornada de trabalho de 48 para 44 horas semanais.

Mas de todas essas mudanças, a que mais interferiu e continua a interferir no Judiciário foi a criação do CNJ pela Emenda Constitucional 45 (2004), chamada de “Reforma do Judiciário”. Entre os vários pontos modificados, a Reforma ampliou a competência da Justiça do Trabalho e alterou de forma significativa algumas nomenclaturas, sendo desnecessário citar os respectivos efeitos disso na vida do trabalhador, em termos de segurança jurídica. Relativamente ao CNJ, acredito que as incontáveis críticas formuladas por juízes e Tribunais a essa instituição não sejam devidas à sua existência em si, haja vista necessitarmos de um espaço para a autorreflexão. Talvez, em minha visão de magistrado, as críticas se devam ao fato de ele não ter a composição, a estrutura e a missão necessárias e desejáveis, o que se deveu exatamente à inércia dos magistrados e das respectivas associações em âmbito nacional. Eles permaneceram silentes, enquanto os demais interessados no controle externo do Judiciário agiam agudamente. Esse silêncio da classe dos magistrados resultou no que temos hoje: um CNJ que propõe e quiçá impõe a realização de uma “justiça em números”, além de poderes que ofuscam a autonomia dos Tribunais, inclusive em matéria interna corporis. Um exemplo disso é gestão administrativa. Pode-se dizer que a atuação do CNJ, no que tange ao controle, no mínimo, esmaece a independência do Poder Judiciário. De fato, a instituição tem extrapolado sua missão nesse sentido e parece mesmo que não há tema nem questão que escape a isso. Em incontáveis vezes, atua como verdadeiro órgão de prestação jurisdicional.

Ao longo da vossa vitoriosa carreira, o Sr. exerceu a advocacia, a magistratura e o magistério jurídico, entre tantos feitos. Com qual carreira jurídica o Sr. mais se identificou?

Dr. João Batista Teixeira – Estou convencido de que todas essas atividades me encantaram e seria injusto escolher uma para manifestar uma identificação maior. A advocacia foi o início de tudo e será o fim de minha caminhada pelas sendas do saber jurídico. Se eu não tivesse ingressado na advocacia, por certo a magistratura e a docência não teriam se tornado realidade.

A magistratura, sem qualquer sombra de dúvida, foi um dos instrumentos que deram significados a meus objetivos. Como advogado, no período de 1971 a 1985, deparei-me com questões que me sugeriam atitudes modificadoras que só um membro da magistratura poderia adotar, a exemplo da celeridade na entrega a prestação jurisdicional. Nesse particular, fui magistrado de julho/1986 a abril/2019 e jamais atendi qualquer profissional do Direito buscando a tardia prolação de atos processuais, de sentenças e de votos. Esse é um fato que muito me honra e acalenta o desiderato construído na advocacia.

A docência, para mim, representou e representa um sonho que se realizou e continua. Creio mesmo que todo estudioso de qualquer área do conhecimento, especialmente da jurídica, tem sede de alongar seus conhecimentos e de compartilhar os já adquiridos. Saber adquirir e saber compartilhar conhecimentos são missões divinas, a serem cumpridas pelo ser humano. Mas as exigências governamentais para o exercício do cargo de professor universitário se transformam em necessidade de atualização. Isso me levou a buscar, na Universidade Autònoma de Lisboa (sic), minha Carta Doutoral em 2009, validada pela Universidade Federal de Pernambuco em outubro de 2014. Por isso, concluo que seria injusto dizer que uma atividade se sobrepôs a qualquer outra em minha caminhada pelo aprendizado da vida, mormente o dos caminhos jurídicos.

O Sr. foi aprovado em diversos concursos públicos para a magistratura. Quais são as dicas aos que almejam seguir os mesmos passos?

Dr. João Batista Teixeira – Realmente, fui aprovado em concursos para a Magistratura em Minas Gerais, em Rondônia e no Distrito Federal. Com a convocação para tomar posse em Minas Gerais e em Rondônia, fui compelido a abandonar os concursos no Rio de Janeiro, no Espírito Santo e em Santa Catarina que estavam em andamento e com sucesso nas fases já realizadas.

1) MINAS GERAIS – fui aprovado no concurso público de provas e títulos para o cargo de JUIZ DE DIREITO e de JUIZ DE DIREITO AUXILIAR de 1ª entrância, realizado em 1986, homologado em sessão da Corte Superior também nesse ano, com aprovação final em 4º lugar;

2) RONDÔNIA – aprovado em 2º lugar no concurso público de provas e títulos para o cargo de JUIZ DE DIREITO e fui empossado em 1986 por opção, já que havia sido aprovado e convocado para posse no E. Tribunal de Justiça de Minas;

Gerais, para o exercício de cargo igual. No Judiciário rondoniense, fui promovido ainda em 1986, da Comarca de Cerejeira para a 2ª Vara Cível da Comarca de Vilhena;

3) DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS – PRIMEIRO GRAU – aprovado em concurso público de provas e títulos para o cargo de juiz de direito substituto, com posse em outubro de 1991, no cargo de juiz de direito substituto. Passei  pela 6ª Vara Cível de Brasília, Vara Cível de Sobradinho, Vara de Órfãos e Sucessões e 3ª Vara Criminal do Plano Piloto. A titularização se deu na 1ª Vara Criminal da Circunscrição Judiciária de Ceilândia-DF, com exercício efetivo no período de 31/07/1994 a 07/12/1995. Aí ocorreu, também por merecimento, promoção para a 7ª Vara Criminal da Circunscrição Especial Judiciária de Brasília;

4) SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO – CONVOCAÇÃO – nos últimos cinco anos isto é, até 2005, exerci a presidência da Segunda Turma Recursal do Juizado Especial Cível e Criminal do Distrito Federal. De 2005 a 2011, fui convocado pelo egrégio Tribunal do Distrito Federal e Territórios, com atuação nas Primeira, Segunda, Terceira e Sexta Turmas Cíveis;

5) TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS – SEGUNDO GRAU – Tomei posse no cargo de Desembargador em dezembro de 2011 e integrei, desde sua constituição, a Terceira Turma Criminal. Tive a honra de presidir essa Terceira Turma e a Câmara Criminal por dois períodos. Igualmente, fui honrado com a indicação para o Conselho Especial nos dois últimos anos de Tribunal. Passei para a inatividade em abril de 2019, mas considero que o fiz prematuramente;

6) JUIZO ELEITORAL – Rondônia – exerci o cargo de juiz eleitoral por dois anos;

7) JUIZO ELEITORAL – Distrito Federal – Instalei a 15ª Zona Eleitoral e nela exerci a judicatura eleitoral se abril/2000 a abril/2002 (GP 258, de 15/03/1999 – Diário da Justiça de 19/03/99, Seção 3, fls. 131).

Voltando ao cerne do questionamento, feitas essas considerações fáticas, estou convencido de que não há mistério para ingresso na magistratura. Basta dedicar-se ao estudo com profundidade e buscar conhecer a jurisprudência das Cortes Superiores, mais especialmente, a do Tribunal para o qual candidato quer concorrer.

O Sr. nasceu em Petrópolis (RJ), exerceu a magistratura no Estado de Rondônia e, em 1991, tornou-se Juiz de Direito Substituto do TJDFT. A partir daí teve início uma belíssima trajetória jurídica na capital do país. Como foi se mudar para Brasília e o que esta cidade representa ao Sr.?

Dr. João Batista Teixeira – Como já destacado, vim da magistratura rondoniense para magistratura do Distrito Federal, capital da República. Estava feliz em Rondônia. A cidade de Vilhena (talvez a melhor do estado), onde prestava jurisdição, atendia bem minhas necessidades até meus dois filhos carecerem de melhor estrutura de ensino. Esse fato me levou a prestar mais um concurso, agora no Distrito Federal, ao qual já me referi.

A mudança para esta capital transcorreu dentro da normalidade, e a adaptação, inclusive quanto à entrega da prestação jurisdicional, não trouxe maiores dificuldades. Ao contrário, Brasília se mostrou e continua a se mostrar extremamente acolhedora, além de oferecer excelente qualidade de vida. Brasília representa quase a integralidade de minha vida jurídica e social. O acolhimento foi de tal grandeza que minha pretensão, quando aqui cheguei, de fazer novo concurso e voltar para minha terra natal, Rio de Janeiro, esvaiu-se. Esse acolhimento e a fácil adaptação ofuscaram e interromperam esse sonho. Meus filhos cresceram, formaram-se e também trabalham nesta cidade; as raízes acabaram se fincando e aqui estamos nós, os Teixeira do bem.

Com o exercício da judicatura eleitoral, o Sr. foi responsável por instalar a 15º Zona Eleitoral do Distrito Federal (DF), que possui a maior concentração de eleitores do DF. Como se deu tal realização?

Dr. João Batista Teixeira – Na Magistratura do DF, fui designado para titularizar a 2ª Vara Criminal de Ceilândia em 1995. Como Taguatinga e Ceilândia se confundiam naquela época, tomei conhecimento da necessidade de se ampliar a prestação da jurisdição eleitoral em Taguatinga. Então, fui também portador do pleito de instalação de mais uma zona eleitoral, a 15ª, no que fui prontamente atendido pelo então presidente Des. José Jerônimo Bezerra de Souza, em abril/2000 (GP 258, de 15/03/1999 – Diário da Justiça de 19/03/99, Seção 3, fls. 131). Minha indicação para inaugurar a 15ª ZE foi respaldada nos critérios de antiguidade e de merecimento.

Em 2018, o Sr. recebeu o título de Cidadão Honorário de Brasília, em cerimônia realizada no plenário da Câmara Legislativa do Distrito Federal – CLDF. Como foi receber essa honrosa condecoração?

Dr. João Batista Teixeira – No segundo semestre de 2017, fui procurado por Dr. Ronaldo Cavalcante que, paralelemente às atividades advocatícias, assessorava o Deputado Distrital Wellington Luiz. Dr. Ronaldo relatou o desejo desse parlamentar de me distinguir com o título de Cidadão Honorário de Brasília. Era uma honraria da qual não poderia declinar; talvez seja o maior presente recebido por quem procede de outro estado. Prontamente aceitei a proposta, antecipando sinceros agradecimentos.

Porém, Dr. Ronaldo apressou-se a informar que tudo dependia da aprovação de um projeto, o que efetivamente aconteceu e resultou no Decreto Legislativo nº 2.191, de 12 de janeiro de 2018. Fui então instado a receber o título, o que ocorreu em uma tarde/noite festiva de 06 de abril de 2018, na presença de familiares, de representantes do STJ, do TJDFT, da OAB-DF, do MPDFT, do MPF e de amigos Desembargadores, juízes e advogados. É uma indescritível condecoração, pontificada em documento assinado pelo presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal e da solenidade, deputado Joe Valle. O título de Cidadão Honorário de Brasília, além de ser um demonstrativo da utilidade e da importância dos serviços prestados à comunidade brasiliense, indica o reconhecimento público dessa prestação de serviços. Particularmente, teve o singular significado de mostrar, a mim mesmo e a minha família, que tenho um número considerável, para não dizer uma gama, de amigos e que muitas pessoas me querem bem, tanto nesta Capital quanto em minha terra natal, de onde veio uma comitiva especialíssima em número e representatividade para o evento comemorativo. A plateia que se fez presente se perpetuou em minha memória de sorte tal que sou incapaz de nutrir esperanças de uma reedição daquela noite festiva pelo resto de minha vida, organizada para jubilar um forâneo que o deixara de ser. Uma vez mais, obrigado a Brasília, à Câmara Legislativa do Distrito Federal e a todos os amigos que de alguma forma contribuíram para essa homenagem e reforçaram seu sucesso.

Com mais de três décadas de exercício da magistratura, o Sr. acompanhou importantes transformações no direito brasileiro, na magistratura, no magistério jurídico e na advocacia. De modo geral, quais são as modificações que o Sr. destacaria como mais relevantes?

Dr. João Batista Teixeira – Já destaquei as mudanças mais perceptíveis, ocorridas no tempo em que vivi (e continuo a viver) e que lidei com a entrega da prestação jurisdicional. Aponto, entre elas, a criação do referido Conselho Nacional de Justiça. Essa, sem dúvida, foi a mais profunda e discutida modificação experimentada pelo magistrado penal comprometido com a justiça humanizadora do Direito Penal e da pena, que deve ser justa, a menos que fira o inciso III do artigo 1º da Constituição Federal.

Não fui e continuo não sendo contra os avanços nem os controles, mesmo que externos, nem também contra o emprego da tecnologia. Porém, sem prejuízo da justa reprimenda a ser imposta ao condenado e dos princípios garantidores da justiça.

Ao longo de vossa carreira, o Sr. exerceu a magistratura em distintas especialidades jurídicas, tais como Direito Eleitoral, Civil e Criminal. Também foi Desembargador do TRE-DF e do TJDFT. Com larga experiência, quais são as lições e reflexões que gostaria de compartilhar com futuros e atuais magistrados?

Dr. João Batista Teixeira – Como se trata de uma entrevista que busca a opinião pessoal, deixo de lado a clara a preocupação constante em minha carreira, a de preservar a dignidade de todos os órgãos da Justiça ou não, no que diz respeito a críticas ou elogios não merecidos que se equivalem.

Todos os que me conhecem e acompanham meu trabalho e minha vida profissional na advocacia, na magistratura e no magistério conhecem bastante minha inclinação e sabem do comprometimento com um Direito Penal mais humano e com penas mais justas. No particular, considero injusta a pena desproporcional ao crime praticado, tanto para mais quanto para menos, mas reconhecendo plenamente a dificuldade de mensurá-la, mormente em casos em que a subjetividade pode direcionar o arbítrio. Esse tema sério e extremamente delicado, inclusive, foi objeto de minha tese de doutoramento na Universidade Autònoma de Lisboa, “A Busca da Justa Reprimenda no Contexto do Estado de Direito”.

Tenho defendido que a pena necessária e suficiente, de que trata o artigo 59 do Código Penal brasileiro, pode ser equiparada a um remédio; há de ser ministrado na dosagem certa. Se maior a dosagem do que a necessidade do paciente, o remédio pode matar; se menor, não produz o efeito desejado. O juiz, como o médico, ao receitar pena maior do que a necessária ao condenado, causa-lhe efeitos colaterais irreversíveis. E se receitar dosagem penal inferior, também falha, pois o tratamento não alcança o resultado perseguido pelo qual ele é responsável.

Em síntese, reforça-se a necessidade de se compreender o sentido da pena: ela deve ser visualizada com base na maior ou na menor censura que se impõe ao delito, na gravidade do fato, na maior ou menor ofensividade ou dano que os atos tenham causado ao bem jurídico penalmente tutelado e na intensidade do dolo ou grau da culpa do apenado. Esse é o fundamento da “pena justa”, ser necessária e suficiente para castigar o infrator e para combater, preventivamente, atos delituosos semelhantes.

Em relação a ser necessária, a título de exemplo, vedada deve ser a imposição de uma pena de quatro anos (máximo previsto para o crime de furto simples) a um cidadão que, sendo primário e com bons antecedentes, subtraiu de um poderoso supermercado um quilo de arroz, tendo sido preso em flagrante e solto dois anos, um mês e três dias depois. Parece evidente a não necessidade da pena que, no caso, ditada pelo excesso, torna-se odiosa e desproporcional ao fato criminoso, ensejando a aplicação da máxima nullum crimem, nulla poena sine necessitate (não há crime, não há pena sem necessidade).

Quanto à suficiência, deve-se entender a capacidade, a aptidão, a potencialidade de a pena funcionar como reprovação pelo delito cometido nos limites precisos. O castigo há de ser tal que, uma vez inflexionado, possa se dizer: nada mais é preciso fazer para que o castigo penal alcance a finalidade de reprovar e de prevenir a ocorrência de novos fatos delitivos. A pena concretizada, se necessária e suficiente, gera para o sentenciado e para a sociedade a certeza de que é exatamente aquilo de que o réu precisava para sentir o vigor e o rigor do Direito Penal e da pena, sem descurar de sua recuperação e socialização.

Cumpre reforçar que a pena em excesso e a reduzida, parcimoniosa, acanhada, aquém das necessidades sugeridas pela gravidade do fato, desatendem o princípio da justa reprimenda. A imposição da pena de seis meses de detenção (máxima prevista para o crime de abuso de autoridade na modalidade disciplinada na alínea “i” do § 3º do art. 6º da Lei de nº 4.898/1965) para o policial que desfere violentos golpes contra um preso, causando-lhe a perda total da visão, mostra-se insuficiente; é injusta, portanto. Sintetizando, no caso da pena privativa de liberdade, ela não deve ser elevada nem diminuta; deve ser necessária e suficiente para reprovar o delito cometido e para prevenir a ocorrência de novos fatos delituosos. Isso é o que a qualifica como pena justa.

Precisamente no limite da pena justa é que se demarca a liberdade ou a discricionariedade que o moderno Estado Democrático de Direito confere ao julgador. Isso, para que possa ele minimizar os rigores e os excessos sugeridos pela pena mínima em abstrato, mormente nos casos em que o castigo se apresente em um patamar mínimo consideravelmente alto.

Se a pena mínima se apresenta elevada, tornando o castigo penal excessivo e, portanto, injusto, não pode o julgador cruzar os braços e culpar o legislador. Cumpre-lhe adotar providências que corrijam o excesso, a fim de se alcançar a pena justa ou a pena necessária e suficiente. É verdade que a lei foi editada para ser cumprida (legis habemus), mas não é menos verdade que a justiça na aplicação da pena centraliza valores que suplantam o mero e burocrático cumprimento da lei. Essas são as premissas, pontifica-se, exigidas do juiz e dos tribunais, não sendo exagero incluir o Conselho Nacional de Justiça nesse rol.

Uma vez mais, deixo de lado as críticas formuladas e me atenho à nominada “justiça em números” a que me referi antes, como uma justiça que se atém ao quanto de casos julgados, em vez de pugnar pela busca da redução das imperfeições na determinação da pena necessária e suficiente. Pelo nome atribuído às Cortes – Superior Tribunal de Justiça, Tribunais de Justiça (Ex. TJ-RJ e TJDFT e por que não incluir o CNJ) –, elas  têm o dever de velar para que justiça seja feita em todos os casos levados ao judiciário. A missão de todas é uma só: realizar a justiça.

Nunca é demais mencionar que o artigo 59 do Código Penal, quanto à pena privativa de liberdade, é específico ao pontuar que o juiz, analisando as circunstâncias do citado artigo, “estabelecerá (a pena), conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”, isto é, deve aplicar pena justa.

Nesse sentido, é a lição do genial penalista alemão Franz von Liszt, ministrada em sua aula inaugural da Universidade de Marburgo (Der Zweckgedanke im Strafrecht), quando se fez conhecida a afirmação de seu programa: “A PENA CORRETA, A PENA JUSTA, É A PENA NECESSÁRIA”.

As colocações elucidadas têm a pretensão de deixar claro que não se pode pensar em fazer justiça, mormente no processo penal, quando se fixa o número de processos a serem julgados dentro de determinado lapso temporal. A medida trata de forma igual grandezas diferentes: justiça é qualidade, número de processos é quantidade. O número importa, mas a solução não pode estar em comprometer a essência do processo, que é o julgamento. São vários e distintos os fatores envolvidos nessa solução. Além disso, a celeridade deve ser debitada ou creditada ao prudente comprometimento do julgador com a entrega da prestação jurisdicional.

De igual forma, não se pode fazer justiça escolhendo uma decisão que parece resolver a questão dos autos, isto é a nominada “justiça inteligente”. O número e a celeridade  importa, mas não à custa do bom julgamento do que está em jogo. Há processos penais cujo julgamento pode se dar em uma hora ou menos. Mas há processos também que, para se se buscar fazer justiça, é necessário conhecer todos os detalhes (mesmo que não aparentem ser importantes), o que leva dias, semanas e até meses. Logo, quando se impõe o julgamento de um certo número de processos para atender a uma pretensão numérica do controle externo, sob pena de responsabilização, está-se fechando portas ou dificultando a cuidadosa busca da justiça, representada pela aplicação da justa reprimenda.

Infelizmente, na minha visão, estamos consagrando o estigma de uma condenação que vem se aperfeiçoando em uma “linha de montagem” que começa na polícia e termina nos tribunais. O cidadão, no mais das vezes, já sai da delegacia condenado, uma vez que o recebimento da denúncia, o processo penal e os procedimentos e a revisão da sentença devem observar,  salvo raras exceções, o padrão concebido.

Isso acontece porque tudo foi feito para “acabar com o processo na mesa do juiz”, desde a gravação das audiências até a prolação do acórdão. Agora o sistema se recrudesce com a implementação do “processo judicial eletrônico”, no qual aperta-se uma tecla e tudo estará resolvido. Ou seja, o quantitativo de julgamento de processos estabelecido certamente será maior, afastando, ainda mais, a visão do justo, da justiça propriamente, pela falta de tempo de se obter o máximo possível do material que o juiz necessita para formar seu juízo de convencimento e decidir com base nele. E nesses casos, nem se pode falar em subjetividade que direciona o arbítrio do julgador. Talvez nem para isso haja tempo; ouso dizer que, não muito longe, pode-se chegar a uma automatização nas decisões. Mas e a justiça? Sabe-se lá se foi ou não feita.

O que estou tentando explicar é que tudo, nos últimos tempos, tem sido feito em benefício da “lei do menor esforço”, independentemente de quem venha a ser prejudicado. Não estou a decretar que não é possível ao juiz, não obstante as dificuldades que os tempos modernos apresenta, superar tais dificuldades e realizar o julgamento justo como se espera, sendo ele um juiz estudioso, comprometido e dedicado. Mas esse comportamento, embora deva ser a maioria, não é regra intransponível, e muitos julgadores dela se desviam para acompanhar a linha da facilidade.

Celeridade sim, e essa sempre foi a marca de minha carreira, paralela e prioritariamente ao respeito à essência daquilo que estava julgando e ao cuidado com a decisão, tendo em vista o ser humano do outro lado da decisão, fosse qual fosse seu delito.

De lição pessoal/profissional, tenho a máxima de que a justiça se materializa no dogma: viver honestamente, não lesar ninguém e dar a cada um o que lhe pertence, não se podendo atropelar para atender a pretensões outras.

O réu precisa defender-se, e sua defesa deve ser conhecida e considerada com a profundidade necessária, para ser acolhida ou rejeitada.

Concluindo, penso que o açodamento de se findar com o processo “justiça em números”, o exagero no controle externo do judiciário, interferindo em sua independência, e o nominado “progresso da informática” tendem a fulminar as garantias fundamentais do cidadão, especialmente no campo do Direito Penal, pelo menos no que respeita à dosimetria da pena.

Insisto: minhas colocações não tiveram o objetivo de criticar qualquer órgão judicante ou não. A pretensão é única e exclusivamente expressar o sentimento de quem viveu longa caminhada de vida nas carreiras jurídicas e a preocupação com os destinos de todos nós, manejadores do Direito, mormente os do Direito Penal, ramo que defende os maiores valores da sociedade e do cidadão e que mais me cativou.

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