por Lorena Ferraz Cordeiro Gonçalves *
A relação dos objetos sociais arte e cultura com a liberdade de expressão vem, inelutavelmente, ganhando proeminência nos campos do direitos constitucional, civil e dos direitos fundamentais. Um exemplo disso é a inclusão nos textos constitucionais modernos e contemporâneos do direito à liberdade de expressão, de criação e da garantia do acesso a esses capitais, enquanto liberdades fundamentais específicas que compõem o quadro das liberdades de expressão.
O Direito intermedia a relação da criação artística com a sociedade em diferentes dimensões sociais, tanto na ativa, como na passiva. Ativa, quando visa garantir direitos difusos como o acesso educacional aos capitais cultural, artístico e histórico, à preservação do capital criativo e da expressão do capital humano em benefício do acesso de todos à circulação livre de ideias e capitais. E passivo quando trata da proteção da autoria e da herança desses capitais, como um direito intergeracional e individual ou autônomo.
A liberdade de expressão é um conceito global e complexo, que pode ser compreendido e mesmo tipificado de modo a representar um conjunto de liberdades culturais ou de liberdades comunicativas, que envolve a liberdade de manifestação de opinião e de interpretação, a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão científica, e também a liberdade de expressão artística ou de criação. A liberdade cultural pode se dar tanto na reprodução de valores e ideias da tradição (liberdade religiosa ou de crença, por exemplo), como trazer aspectos de vanguarda contra-paradigmáticos, interação fundamental à dinâmica social, histórica e mesmo econômica, porque traz movimento e inovação.
A forma como o Direito historicamente codifica e relaciona a arte, a cultura e as liberdades toca substancialmente os chamados Direitos Fundamentais ou constitutivos da condição humana, princípios caros aos Direitos Humanos internacionais, e protegido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e pela Convenção Americana de Direitos Humanos, todos esses tratados ratificados pelo Brasil.
A definição jurídica do que é liberdade artística e quais seus limites, e como dar tratamento jurídico à questão, muitas vezes se esbarra na linha tênue entre a arte e ato ilícito, um conflito histórico entre as dimensões individual (direito autônomo) e coletiva (proteção da imagem, da moral, das tradições e da honra) da vida em sociedade. A relação da arte com as liberdades juridicamente é desafiadora e conflituosa, porque a arte e as expressões artísticas muitas vezes entram em choque com princípios coletivos rígidos de moralidade e ética, vinculados às instituições família, religião e bons costumes.
A Constituição brasileira traz recomendações claríssimas para a proteção das liberdades individuais e comunitárias, inclusive a artística, muito embora a liberdade artística não seja definida em um dispositivo próprio e específico na Constituição de 1988:
- é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, inciso IX);
- é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística (art. 220, parágrafo 2º).
A Constituição prevê, ainda, um direito à cultura no artigo 215, que estabelece que o Estado garantirá o exercício dos direitos culturais, protegerá e apoiará as manifestações culturais, protegerá o patrimônio cultural, a produção e a difusão de bens culturais.
Tudo isso leva a crer que a relação do Direito com a Arte é complementar e estratégica, tanto para garantir, como para promover esses capitais e aprimorar nossas capacidades naquilo que talvez seja o maior desafio das sociedades em todos os tempos, aquilo que os Direitos Humanos qualifica como “gestão da diversidade”, e que alguns ramos contemporâneos da jurisprudência chama de “gestão de conflitos”.
Parece adequado chamar os pensadores do Direito contemporâneo para construir uma melhor definição ou tipificação do que é a liberdade vinculada à arte e à cultura, tornando-as direitos distintos da pura liberdade de expressão, contraposta à censura. Esta é uma lacuna que, se preenchida, poderá afinar e harmonizar a nossa “gestão da diversidade”, esse grande desafio político. É preciso vincular precisamente a “liberdade de expressão artística” a uma qualificação mais profunda e a uma compreensão apaziguada do que é a Diversidade, ou conforme qualificado na Antropologia “a alteridade”. Isso certamente vai balizar a regulação das relações sociais nesse fronte.
* Lorena Ferraz Cordeiro Gonçalves é socióloga, pesquisadora e consultora, magister em Direitos Humanos pela Universidade de Padova, Itália.